domingo, 23 de outubro de 2011

Proudhon X Marx. Liberdade X Escravatura.


Em 28 de dezembro de 1846, Marx escreve a Pavel Annenkov para comentar o “Filosofia da Miséria”, de Proudhon. Começa a carta se desculpando pela demora na resposta à missiva de 1º de novembro, pois seu livreiro demorou para enviar a publicação ( em francês). Informa que leu o livro em dois dias para comunicar imediatamente a sua opinião, mas que poderá entrar em pormenores em uma segunda correspondência. Selecionei um trecho, muito crítico, em que ele faz uma rápida referência ao Brasil e afirma que “Sem a escravatura, a América do Norte, o povo mais progressivo, transformar-se-ia num país patriarcal”.

“A liberdade e a escravatura formam um antagonismo. Não preciso falar dos lados bons nem dos lados maus da liberdade.
Quanto à escravatura, não preciso falar dos seus lados maus. A única coisa que é preciso explicar é o lado belo da escravatura. Não se trata da escravatura indireta, da escravatura do proletário, trata-se da escravatura direta, da escravatura dos Negros no Suriname, no Brasil, nas regiões meridionais da América do Norte.
A escravatura direta é o eixo de nosso atual sistema industrial, tal como as máquinas, o crédito, etc. Sem escravatura, não temos algodão; sem algodão, não temos indústria moderna. Foi a escravatura que deu valor às colônias, foram as colônias que criaram o comércio mundial, o comércio mundial é que é a condição necessária da grande indústria mecânica. Por isso, antes do tráfico dos negros, as colônias só davam ao velho mundo muito poucos produtos e não alteravam visivelmente a face do mundo. Assim, a escravatura é uma categoria econômica da mais alta importância. Sem a escravatura, a América do Norte, o povo mais progressivo, transformar-se-ia num país patriarcal. Risque-se apenas a América do Norte do mapa dos povos e ter-se-á a anarquia, a decadência completa do comércio e da civilização modernos. Mas fazer desaparecer a escravatura seria riscar a América do mapa dos povos. Por isso a escravatura, sendo uma categoria econômica, se encontra desde o começo do mundo em todos os povos. Os povos modernos só souberam disfarçar a escravatura no seu próprio seio e importá-la abertamente no Novo Mundo. Como abordará isto o bom do sr. Proudhon  depois destas reflexões sobre a escravatura? Procurará a síntese da liberdade e da escravatura, o verdadeiro meio termo; por outras palavras: o equilíbrio da escravatura e da liberdade.
O sr. Proudhon compreendeu muito bem que os homens fazem o pano, a tela, os tecidos de seda; que grande mérito ter compreendido tão pouca coisa! O que o sr. Proudhon não compreendeu é que os homens, segundo as suas faculdades, produzem também as relações sociais em que produzem o pano e a tela. Menos ainda compreendeu o sr. Proudhon que os homens, que produzem as relações sociais em conformidade com a sua produtividade material, produzem também as ideias, as categorias, isto é, as expressões abstratas ideais [idéelles] dessas mesmas relações sociais. Assim, as categorias são tão pouco eternas quanto as relações que exprimem. São produtos históricos e transitórios. Para o sr. Proudhon, muito pelo contrário, a causa primitiva são as abstrações, as categorias. Segundo ele, são elas e não os homens que produzem a história. A abstração, a categoria tomada como tal, isto é, separada dos homens e da sua ação material, é naturalmente imortal, inalterável, impassível; é apenas um ser da razão pura, o que só quer dizer que a abstração tomada como tal é abstrata. Tautologia admirável!. “

5 comentários:

  1. Aproveitando a deixa, foi então que --- a começar pelo trocadilho no título --- Marx pôde dar o "tiro de misericórdia" ou, em outras palavras, colocar uma pá de cal sobre o socialismo utópico-reformista --- marcado por sua aparência pequeno burguesa ---, quando, em 1847, publicou "A Miséria da Filosofia".

    A obra, em apertada síntese, resultou em verdadeira evolução de Marx.

    Seu enredo demonstrou, com nitidez, o progresso de suas investigações acerca da economia/política.

    Com efeito, sua crítica aos postulados [em tese]
    científicos de Proudhon traduz-se na espinha dorsal da obra, onde, aliás, são encontradas diversas análises confirmadas em textos posteriores de Marx.

    Destaque-se, ainda, que "A Miséria da Filosofia" atesta o estágio político atingido por Marx, tendo, a partir daquele momento, sido elaborado seu projeto comunista revolucionário, no qual são constestadas, com rigor, eventuais ideologias contrárias, capazes de retirar, do proletariado, seu devido foco, qual seja, o desempenho das funções sociais a ele conferidas.

    Foi por meio da obra de que aqui se cuida, aliás, que Marx passou a dominar o pensamento socialista da época, servindo como parâmetro, inclusive, da Liga dos Justos e da I Internacional Comunista.

    BR

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    1. Lamento informar, mas essa obra não pode ter levado Marx a "dominar o pensamento socialista da época", simplesmente porque, na época, ela quase não foi lida. Mesmo na Alemanha, As Contradições, de Proudhon, foram bem mais conhecidas nas duas primeiras décadas.
      Toda a tensão central entre Proudhon e Marx está perfeitamente exposta nessa carta. Marx (e o materialismo alemão vitorioso) considerava Justiça, Liberdade, Verdade, Direito, etc. categorias históricas destituídas de qualquer realidade, portanto, de qualquer valor substancial. No limite, isso destrói não só o projeto socialista, mas até mesmo o motivo que levaria alguém a ser socialista. Se tudo se reduz ao concreto, o hedonismo é a última verdade, e um burguês seria muito mais realista que um socialista.
      A cínica posição de Marx sobre a "escravidão direta" é só uma das infinitas aplicações desse relativismo. Daí para a escravidão política da própria classe operária, em nome da "causa", do Estado Perfeito, do sonho historicamente arbitrário do Partido, é um caminho bem pequeno.

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    2. Caro Vilena, com certeza todos os textos de Marx foram pouco lidos durante sua vida ( 1883). Alguns dos mais relevantes - os Grundrisse, são um bom exemplo - somente foram publicados em idiomas diversos ( ingles, espanhol, frances, etc) na 2ª metade do século XX. O projeto socialista continua um sonho cada dia mais distante. Em compensação, o fetichismo da mercadoria está cada dia mais presente...

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  2. Caro BR,
    O mais surrealista na postura de desprezo de Marx pela filosofia - fiz algumas postagens sobre o tema - é que o velho Karl ficará na história como um dos grandes filósofos do século 19.....

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  3. “Durante minha estada em Paris em 1844, entrei em relações pessoais com Proudhon. e lembro esta circunstância porque até um certo ponto sou responsável pela sua "sophistication", palavra que os ingleses empregam para designar a falsificação de uma mercadoria. Em longas discussões, muitas vezes prolongadas durante noites inteiras, eu lhe injetava hegelianismo — com grande prejuízo para ele, pois que não sabendo alemão, não podia estudar a coisa a fundo.” Trecho da carta de Marx a J.B.Von Schweiter em 24 de janeiro de 1865

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