quinta-feira, 31 de maio de 2012

Fetichismo. O caráter místico das mercadorias.


Imagine duas bolsas femininas exatamente iguais – mesmas matérias primas, mesmo design, mesmo acabamento. Apenas uma pequena diferença: uma delas tem o DG, de Dolce e Gabana. A que porta o DG custa 10 vezes mais...... Na metade do século 19, o velho Karl antecipou a situação ao identificar o fetichismo das mercadorias. Ou como enfatiza Isaak Rabin, Marx vislumbrou “relações humanas por trás das relações entre as coisas, revelando a ilusão da consciência humana que se origina da economia mercantil”. Em meados do século 20, a fetichismo das mercadorias ganhou um apelido: Marketing.
Selecionei um trecho do excelente estudo de Felipe Augusto da Rocha Santos – “O fetichismo da mercadoria - um passeio entre Marx e a ''coisificação'' do trabalho humano” – que estimula uma reflexão.
“Tendo em vista a força da alienação, muitas pessoas passam a ver as mercadorias com vidas próprias, envoltas em um caráter místico. Os valores passam a fazer parte de uma suposta propriedade natural das coisas. Isso é o que Karl Marx chamou de caráter fetichista da mercadoria. A correlação íntima entre alguns dos conceitos presentes no marxismo, como a mais-valia, a alienação e a ideologia, é fundamental para uma melhor compreensão do fetichismo da mercadoria, por isso, esses conceitos são convenientemente abordados no presente trabalho.
Mas, em linhas gerais, o que Marx representou na concepção de fetichismo? Nas palavras de Isaak Rubin (1980, p.19),

Consiste em Marx ter visto relações humanas por trás das relações entre as coisas, revelando a ilusão da consciência humana que se origina da economia mercantil e atribui às coisas características que têm sua origem nas relações sociais entre as pessoas no processo de produção.
O que Marx enxergou brilhantemente, em "O Capital", foi o dispêndio de nervos, músculos e sentidos; o trabalho, essencialmente humano, converter-se em valor objetivo da mercadoria. O enigma do fetichismo dessa mercadoria se demonstra no momento em que, nas relações entre produtores, as mercadorias refletem as características sociais do trabalho como naturalmente intrínsecas às coisas. Por outro lado, "reflete a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social existente fora deles, entre objetos" (MARX, 1996, p. 198). Coisificam-se as relações humanas e personificam-se as coisas.
Conceituar de forma plena o fetichismo que envolve a mercadoria é tarefa, de fato, complicada, obstaculizada pela própria forma como o conceito vai evoluindo ao longo da obra "O Capital". No entanto, serão aqui apresentadas mais algumas abordagens e a forma como a ideologia do capital reforça a sua propagação.
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O fetichismo, portanto, apresenta-se também de forma muito real, paradoxalmente, numa realidade muito concreta ante o misticismo que envolve a conceituação da face fetichista da mercadoria. Ainda em consonância com Rubin (1980, p. 73), ele não é só um fenômeno da consciência social, mas um fenômeno da própria existência social. Percebe-se que a sociedade adere ao fetichismo a partir do momento em que se resigna perante o estabelecido, que se distancia de sua organização e produção. Ela passa a se relacionar tão somente por meio de coisas que carregam em si essencialmente trabalho. Ainda que o pensamento se subverta e passe a ver a mercadoria pelo real trabalho que nela está inserido, o indivíduo permanecerá se relacionando por meio da mercadoria, ressuscitando o fetiche. Não se trata, pois, de mera questão de consciência individual, a questão passa pelas características do modo de produção burguês. O que fica claro, conforme aduz Marx (1996, p.201), é que "Todo o misticismo [...] das mercadorias, toda a magia e a fantasmagoria que enevoam os produtos de trabalho [...] desaparecem, por isso, imediatamente, tão logo nos refugiemos em outras formas de produção".




sábado, 26 de maio de 2012

Marx ecológico e a Rio 92


A Revista Eletrônica de Mestrado em Educação Ambiental publica, na edição janeiro/julho de 2010, o estudo de Eduardo Corrêa Morrone e Carlos Roberto da Silva Machado A NATUREZA EM MARX E ENGELS: Contribuição ao debate da questão ambiental na atualidade”. Os autores procuram demonstrar a capacidade de Marx/Engels em antecipar o tema ecologia, a partir dos FORMEN (1857/8), da Critica ao Programa de Gotha (1875) – de Marx – e “Sobre o Papel do Trabalho na Transformação do Macaco em Homem” (1876) – de Engels. Com a humanidade se preparando para a Rio 92, vale um leitura do texto e a sempre oportuna revisita ao velho Karl. Íntegra do texto em www.remea.furg.br/edicoes/vol24/art4v24.pdf.
Selecionei um pequeno trecho para estimular a leitura integral.

“Na Crítica ao Programa de Gotha, redigido em 1875, quase duas décadas após o manuscrito das Formações Econômicas Pré-Capitalistas, Marx faz duras e embasadas críticas ao Programa elaborado pelo Partido Operário Alemão liderado por Lassalle. Isto porque, no inicio do programa é afirmado que o trabalho é a fonte de toda a riqueza, e poderíamos dizer atualizando o debate, de como alguns afirmam serem os trabalhadores a fonte de toda a riqueza. Ao redigir tais críticas inicia justamente pela temática da natureza postulando que ao contrário do que ficou expresso no programa, diz
“o trabalho não é fonte de toda riqueza. A natureza é a fonte dos valores de uso (os valores de uso são, de fato, a riqueza real!) tanto quanto o trabalho, trabalho que é expressão de uma força natural, a força de trabalho do homem. Esta frase repisada encontra-se em todos os manuais e só é verdadeira se for subentendido que o trabalho é anterior, e é executado com todos os instrumentos e procedimentos que o acompanham. Mas um programa socialista não pode permitir que essa fraseologia burguesa omita as condições que, só elas, lhe podem dar sentindo. Só enquanto o homem se coloca, desde o início, como proprietário em relação á natureza, a fonte primeira de todos os meios e objetos de trabalho, e a trata como se ela (a natureza) lhe pertencesse, é que o seu trabalho se converte em fonte de valores de uso e, portanto, em fonte de riqueza (MARX, 2004, p.125-126).”
O trabalho, enquanto produtor de valores de uso, ao transformar as matérias primas da fonte primeira da natureza, assume neste sistema uma forma – equivalente – de valor de troca para aquele que é o proprietário dos meios de produção, e portanto, controla as relações sociais a ele subjacente. A natureza é anterior ao trabalho e ao trabalhador, e somente, no sistema capitalista que o trabalho assume a forma que tem hoje, de assalariado, e produtor de valores de uso e de troca. Neste caso, valor de uso para quem compra e valor de troca para quem vende. Tal sentido, duplo e contraditório – da mercadoria, diz Henri Lefebvre, ser um dos menos compreendidos da produção de Marx em o Capital, pois pressupõe um pensar dialético que articulado numa mesma “coisa” um duplo sentido e significado. Poderíamos extrapolar para as relações com a natureza, ou seja, a natureza pode ter um sentido para nós – não capitalistas – e outra, para os capitalistas, que somente a veriam como fonte de recursos e de lucros. Mas, Marx indicando que Lassalle e seus adeptos, com tais formulações se aproximavam de interesses e concepções das classes dominantes:
“os burgueses têm razões de sobra para atribuir ao trabalho esse poder sobrenatural de criação: precisamente pelo fato de o trabalho estar na dependência da natureza se conclui que o homem que possuir apenas a força de trabalho será forçosamente, em qualquer estado [situação] social e de civilização, escravo de outros homens que se tornaram proprietários das condições objetivas do trabalho. Ele não pode trabalhar nem, por conseguinte, viver, a não ser com a autorização destes últimos (MARX, 2004, p.125).”

terça-feira, 22 de maio de 2012

Marx tem a chance de salvar a economia mundial.


Em setembro de 2011, George Magnus - economista-chefe do Banco Suíço USB – escreve artigo com o titulo acima e com o subtítulo “O espírito de Marx, que está enterrado em um cemitério perto de onde eu vivo no norte de Londres, saiu da sepultura por causa da crise financeira e da recessão econômica subseqüente”.
Magnus afirma que os lideres políticos fariam bem “em estudar o trabalho de um economista que morreu há muito tempo, Karl Marx”. Selecionei alguns trechos instigantes, inclusive o que endossa a tese defendida pelo novo presidente francês, François Hollande, de criar empregos para domar a crise, em contradição com Dona Merkel.....

“A análise profunda do filósofo mais sábio do capitalismo tem várias de falhas, mas a economia global de hoje apresenta muitas semelhanças misteriosas com as condições que ele tinha antecipado. Vejamos, por exemplo, a previsão de Marx de que o conflito inerente entre capital e trabalho se manifestaria inevitavelmente. Como escreveu em "Das Kapital", a busca das empresas por benefícios de produtividade, é claro, leva a necessidade de menos trabalhadores, levando à criação de um "exército de reserva" dos pobres e desempregados: "A acumulação de riqueza num pólo é, portanto, ao mesmo tempo, acumulação de miséria" Marx descreve o processo que é visível em todo o mundo desenvolvido, particularmente nos esforços das empresas dos EUA para reduzir custos e evitar a contratação.
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Marx também notou o paradoxo do excesso de produção e baixo consumo: quanto mais trabalhadores são relegados à pobreza, menos serão capazes de consumir todos os bens e serviços que as empresas produzem. Quando uma empresa reduz seus custos para aumentar a receita, é sábio para maximizar os lucros, mas quando o fazem todas as empresas, ao mesmo tempo, prejudicam a distribuição de renda e demanda efetiva para aqueles que dependem da renda e salário. Este problema também é evidente no mundo desenvolvido de hoje. Temos uma capacidade substancial de produzir, mas nas áreas de média e baixa renda, encontramos uma insegurança financeira generalizada e baixas taxas de consumo.
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Então, como resolver esta crise? Para colocar o espírito de Marx na caixa, os líderes políticos têm de colocar a criação de postos de trabalho no topo do programa econômico e considerar outras medidas não-ortodoxas. A crise não é temporária, e certamente não será curada pela paixão ideológica de austeridade do governo. “

segunda-feira, 21 de maio de 2012

1850. Marx e a profecia chinesa.


Em fevereiro de 1850, Marx publica artigo na Nova Gazeta Renana sobre os “Deslocamentos do Centro de Gravidade Mundial”. O velho Karl profetiza a transformação do Oceano Pacífico em grande via do comércio mundial, a partir da descoberta das minas da Califórnia. Relata ainda como a invasão de produtos americanos e ingleses destruiu a manufatura chinesa – mal sabia ele que a China daria o “troco” no século 21. Antecipa ainda o perfil do futuro socialismo chinês.

“Vamos agora ocupar-nos da América, onde sucedeu algo mais importante do que a revolução de Fevereiro [1848]: a descoberta das minas de ouro californianas. Dezoito meses após o acontecimento já é possível prever que terá efeitos mais consideráveis do que a própria descoberta da América.
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Graças ao ouro californiano e à energia inesgotável dos yankees, os dois lados do Pacífico serão em breve tão povoados e tão ativos no comércio e na indústria como o é atualmente a costa de Boston a Nova Orleans.
O oceano Pacífico desempenhará no futuro o mesmo papel que foi do Atlântico na nossa era e do Mediterrâneo na Antiguidade: o de grande via marítima do comércio mundial, e o oceano Atlântico descerá ao nível de um mar interior, como é hoje o caso do Mediterrâneo.
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Enfim, uma curiosidade característica da China, contada pelo conhecido missionário alemão Gutzlaff. Uma excessiva população, de crescimento lento mas regular, tinha provocado, já desde há muito tempo, uma tensão violenta nas relações sociais da maior parte da nação.
Em seguida vieram os ingleses, que forçaram a abertura de cinco portos ao livre comércio. Milhares de navios ingleses e americanos singraram para a China, que, em pouco temo, foi inundada de produtos britânicos e americanos baratos. A indústria chinesa, essencialmente de manufaturas, sucumbiu à concorrência do maquinismo. O inabalável Império sofreu uma crise social. Os impostos deixaram de entrar, o Estado encontrou-se à beira da falência, a grande massa da população conheceu a completa pobreza, e revoltou-se. Acabando com a veneração aos mandarins do Imperador e aos bonzos, perseguia-os e matava-os. Hoje, o país está à beira do abismo, e talvez sob a ameaça de uma revolução violenta.
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É muito provável que o socialismo chinês se assemelhe ao europeu como a filosofia chinesa ao hegelianismo. Qualquer que seja a forma, podemos alegrar-nos com o fato de que o Império mais antigo e sólido do mundo tenha sido arrastado em oito anos, pelos fardos de algodão dos burgueses da Inglaterra, até a iminência de uma convulsão social que, qualquer que seja o caso, deve ter consequências importantíssimas para a civilização. E, quando os reacionários europeus, na sua já próxima fuga, chegarem enfim junto à Muralha da China, às portas que supõem abrir-se como fortaleza da reação e do conservadorismo, quem sabe se não lerão ali:
República Chinesa
Liberdade, Igualdade e Fraternidade

sábado, 19 de maio de 2012

Qual a fronteira entre Marxismo e Psicanálise?


Maria Rita Kehl, integrante da Comissão da Verdade e reconhecida como profunda conhecedora da obra de Freud e Lacan produz um excelente texto para explicar formação de “celebridades” como Ronaldinho e Xuxa usando o conceito de fetiche, criado por Marx e utilizado por Freud e Lacan. No texto, Kehl afirma que “Muitos elementos da teoria psicanalítica se reencontram, quase inalterados, naquilo que Marx escreveu sobre o fetichismo da mercadoria, que regula as relações de troca e valor no mundo capitalista.” Vale lembrar que, no final de sua vida, Freud reconheceu que conhecia pouco a obra de Marx. Seguem mais alguns trechos do artigo de 1999.

 “Analisando o primeiro capítulo de O Capital, em que Marx lança as bases de sua teoria sobre o fetichismo, Leon Rozitchner vai buscar na origem das transformações sociais que possibilitaram o surgimento do modo de produção capitalista, aquilo que a humanidade “recalcou”, a memória embutida/esquecida no corpo de cada mercadoria posta em circulação no mercado . São as formas coletivas, pré-capitalistas, de produção e distribuição de bens, as organizações comunitárias que desapareceram e que sobrevivem no imaginário coletivo, representadas pela circulação de mercadorias. O que a mercadoria oculta, o seu “segredo” segundo Marx, não é a coletividade e sim o seu desaparecimento. Não é o esforço do trabalhador, mas sua expropriação:
“Marx tem, portanto, que dar conta não apenas de como foi historicamente expropriado o homem proprietário que trabalha, que culmina no sistema capitalista; também tem que dar conta de como num momento da história emerge aquela forma que está presente como expropriação do poder coletivo e, ao mesmo tempo, a forma simbólica que adquire o poder para ocultar seu próprio fundamento através das próprias forças das quais se apropria” (Rozitchener, cit., p.120).
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 “Recorro a Slavoj Zizek, outro teórico da fronteira entre o marxismo e a psicanálise para pensar esta questão:
“O que se deve ter em mente, aqui, é que “fetichismo” é um termo religioso para designar a idolatria “falsa” (anterior) em contraste com a crença verdadeira (atual): para os judeus, o fetiche é o Bezerro de Ouro; para um partidário do espiritualismo puro, fetichismo designa a superstição “primitiva”, o medo de fantasmas e outras aparições espectrais, etc. E a questão, em Marx, é que o universo da mercadoria proporciona o suplemento fetichista necessário à espiritualidade "oficial”; é bem possível que a ideologia “oficial” de nossa sociedade seja o espiritualismo cristão, mas sua base real não é outra senão a idolatria do Bezerro de Ouro, o dinheiro ”. De acordo com a leitura que Zizek faz do Capital, o fetichismo da mercadoria produz o efeito de uma “insólita espiritualização do corpo-mercadoria” (p.26) - a presença, “na própria matéria, de um elemento imaterial mas físico, de um cadáver sutil, relativamente independente do tempo e do espaço” em que esta mercadoria efetivamente circula. A espiritualização, a mesma que se perdeu como riqueza circulante nas trocas criativas entre os indivíduos, retorna aderida às mercadorias, como crença necessária para produzir o esquecimento das condições materiais da produção dessas mesmas mercadorias: a morte lenta do corpo do trabalhador, que transferiu seu tempo de vida para a coisa produzida, e o empobrecimento geral de uma sociedade que só consegue “enriquecer” às custas destas vidas expropriadas.”

quinta-feira, 17 de maio de 2012

A Burguesia e a Contra-Revolução.


Em dezembro de 1848, Marx publica no Nova Gazeta Renana, uma brilhante análise do comportamento revolucionário da burguesia nas revoluções de 1648 e de 1789. Segue um trecho.
“Não se pode confundir a revolução prussiana de Março, nem com a revolução inglesa de 1648, nem com a francesa de 1789.
Em 1648, a burguesia estava ligada à nobreza moderna contra a realeza, contra a nobreza feudal e contra a Igreja dominante.
Em 1789, a burguesia estava ligada ao povo contra realeza, nobreza e Igreja dominante.
A revolução de 1789 tinha por modelo (pelo menos, na Europa) apenas a revolução de 1648, a revolução de 1648 apenas a insurreição dos Países Baixos contra a Espanha. Ambas as revoluções estavam avançadas um século, não apenas pelo tempo, mas também pelo conteúdo, relativamente aos seus modelos.
Em ambas as revoluções, a burguesia era a classe que realmente se encontrava à cabeça do movimento. O proletariado e as frações da população urbana não pertencentes à burguesia não tinham ainda quaisquer interesses separados da burguesia ou não constituíam ainda quaisquer classes, ou sectores de classes, autonomamente desenvolvidas. Portanto, ali onde se opuseram à burguesia, como, por exemplo, de 1793 até 1794, na França, apenas lutaram pela perseguição  dos interesses da burguesia, ainda que não à maneira da burguesia. Todo o terrorismo francês não foi mais do que uma maneira plebeia de se desfazer dos inimigos da burguesia, do absolutismo, do feudalismo e da tacanhez pequeno-burguesa.
As revoluções de 1648 e de 1789 de modo algum foram revoluções inglesas ou francesas, foram revoluções de estilo europeu. Não foram a vitória de uma classe determinada da sociedade sobre a velha ordem política; foram a proclamação da ordem política para a nova sociedade europeia.
Nelas, a burguesia venceu; mas a vitória da burguesia foi então a vitória de uma nova ordem social, a vitória da propriedade burguesa sobre a feudal, da nacionalidade sobre o provincianismo, da concorrência sobre a corporação, da divisão [da propriedade] sobre o morgadio, da dominação do proprietário da terra sobre o domínio do proprietário pela terra, das luzes sobre a superstição, da família sobre o nome de família, da indústria sobre a preguiça heróica, do direito burguês sobre os privilégios medievais.
A revolução de 1648 foi a vitória do século XVII sobre o século XVI, a revolução de 1789 a vitória do século XVIII sobre o século XVII. Estas revoluções exprimem mais ainda as necessidades do mundo de então do que das regiões do mundo em que se deram, a Inglaterra e a França.”

domingo, 13 de maio de 2012

O fetichismo sem objeto.

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Desde a minha releitura serena e não dogmática do trecho dedicado ao fetichismo da mercadoria - no Volume 1 do Capital - firmei a convicção de que essa tese do velho Karl o diferenciava dos economistas clássicos ingleses e, de uma certa forma antecipava a sociedade pós-industrial, onde o consumo é o senhor absoluto. Selecionei um trecho de artigo de Isleide Arruda Fontenelle, professora da FGV, onde ela se refere ao fetiche da nova era que se inicia onde não existe mais um objeto a ser consumido, mas apenas gozado – ou, como se refere Zizek, um “estranho fenômeno: o fetichismo sem objeto”.

“É Slavoj Zizek – na tradição de Marx e da Teoria Crítica, bem como no resgate de uma abordagem política da psicanálise – quem vai refazer o empreendimento frankfurtiano (da junção objetividade e subjetividade; ou se quiser, marxismo e psicanálise) a fim de compreender a ilusão inconsciente que sustenta o agir da posição cínica. E é nesse ponto em que podemos re-estabelecer a relação entre fetichismo e alienação: no “sabe, mas age como se...” há um saber (que poderíamos até identificar como o oposto da “falsa consciência” marxista), que mesmo revelado, não consegue promover a emancipação. Isso porque há um desconhecimento que se manifesta no agir (Zizek diz que a realidade é o lugar da ilusão) – portanto, fruto de uma forma de alienação ligada a configurações históricas específicas e a uma forma de poder que a elas corresponde. Neste caso específico que é o nosso, embora saibamos que existimos para além da imagem, estamos enredados em um modelo social no qual só nos inserimos como sujeitos mediante a imagem.
Como lêem bem o desejo e respondem a ele com fetiche, não surpreende que as novas pesquisas de mercado indiquem uma busca pelo “retorno ao corpo” – pela via sensorial –, e no avesso disso, indiquem também a procura pela experiência “psicoespiritual”. É de novo Zizek quem vai mostrar como a chamada “espiritualidade new age” funciona como um grande fetiche dos nossos tempos. Pois essas formas modernas de espiritualidade estampam uma experiência intensa da materialidade, no sentido dessa relação com o corpo – aquele corpo “indestrutível e não criado, que persiste para além da deterioração do corpo físico (...) uma corporeidade imaterial do corpo sem corpo (...) na sua materialidade sublime” (1991, p. 137).
A relação constitutiva entre corpo e alienação – tão presente nas teorias marxista e psicanalítica – precisa ser retomada a partir dessa nova perspectiva dada pela realidade social na qual nos encontramos: chegamos a um estágio tal de descartabilidade, desterritorialização, descontinuidade temporais, que o fetiche ganha um estranho formato nessa nova era tido como “do acesso”: de não haver mais um objeto a ser consumido, mas apenas gozado – o que coincide com o que foi dito por Zizek em sua palestra no Brasil em 2004 – que os lacanianos já estão se dando conta de um “estranho fenômeno: o fetichismo sem objeto”.
É preciso buscar, portanto, onde está o Real da ilusão nessa nova forma de organização social da ilusão. Ou seja: o lugar onde o sujeito busca “dar consistência à sua identidade fora dos ‘títulos’, dos referenciais que o situam na rede simbólica universal, uma maneira de presentificar (...) sua fantasia” (Zizek, 1991, p. 149-150).




quarta-feira, 9 de maio de 2012

O processo dos sonhos e o fetichismo da mercadoria

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Nicolas Lichtmaier, em “El fetichismo de La mercancia” ( Teorias Sociológicas Del Estado) faz uma interessante análise do tema a partir da afirmativa “Este mundo "fetichizado" do capitalismo é um processo que transforma o qualitativo em quantitativo, iguala  tudo e compara  tudo”. Selecionei um pequeno trecho e fiz uma tradução livre. Quem tiver interesse em conhecer a íntegra, acesse    www.lichtmaier.com.ar
“ Marx utilizou o conceito de fetichismo da mercadoria para descrever um "feitiço” (“embrujo”) que envolve os bens produzidos no âmbito do sistema de produção capitalista. Os produtores produzem, privadamente, bens e, em seguida, se vinculam com outros seres humanos através desses bens. De acordo com o fetichismo das mercadorias, os bens se apresentam ao um produtor como uma coisa, e seu  valor é pré-existente. É anterior e determinante do produtor e de seu processo de produção. O produtor torna-se então um atributo do objeto produzido, e este último é torna-se sujeito. E este objeto ao se tornar "sujeito" é o que constrói relacionamentos "humanos" com outros objetos a serem trocados no mercado. Este mundo "fetichizado" do capitalismo é um processo que transforma o qualitativo em quantitativo, iguala  tudo e compara  tudo.
Não se pode despertar do fetichismo da mercadoria, ao contrário do que acontece com o ideologia. As formas de pensar marcadas por este efeito não são uma fraude. Marx observa que são objetivas, socialmente válidas, e que caracterizam o modo de produção. Esta operação de transferência, de comparação do trabalhos humanos homogeneizados sob a forma de mercadoria, não exige que os atores participem de dela de maneira consciente.
Žižek explica como esta operação ocorre fora da consciência, mostrando um paralelo entre o fetichismo da mercadoria e funcionamento do inconsciente descrito por Freud e Lacan. Ele observa que a distinção diferenciação que Marx faz entre forma e conteúdo - sendo a forma a chave para a compreender o mecanismo - pode ser comparado com a descrição de Freud do processo pelo qual são criados sonhos. Neste processo, um pensamento latente (que não é misterioso, e até pode ser consciente) é "arrastado" para o inconsciente. Ali, submerge nos processos primários do inconsciente por onde nos chega a linguagem. Estes processos lhe dão forma e, finalmente, emerge no conteúdo manifesto do sonho.
Nesta tríade, nem o conteúdo do sonho nem o pensamento latente são o que interessa.
O interessante é por que esse pensamento latente adotou essa forma determinada, porque aí aparece a marca deixada por estes processos primários do inconsciente? Os economistas liberais clássicos – com os quais Marx dialoga em O Capital – tentam desvendar o segredo através do que seria  o "pensamento latente" da economia: o valor. Esses economistas tentam descobrir a origem dele, desenvolvendo vários conceitos e teorias com esse objetivo. Eles haviam descoberto que existia uma relação entre o valor e o trabalho contido nas mercadorias, mas ainda não conseguiam desvendar o mistério, por exemplo, da origem do lucro capitalista. Marx diz que eles chegam a um valor que é para eles um hieróglifo, um significante arbitrário que não pode conseguem interpretar.

Marx assinala que isso sucede porque o mistério a revelar não é o segredo da origem do valor, mas a forma que ele assume. Tal como no caso do inconsciente, há um núcleo duro, o desejo, e no caso da mercadoria, o núcleo oculto são as relações de dominação. Em um fóssil não importa tanto analisar a matéria calcária de que é feito, mas a forma como foi moldado por um ser que não está mais no fóssil. Da mesma forma, a análise de como  é gerado o valor do trabalho humano, não revela o segredo do sistema. Esse segredo aparece na forma em que adota esse valor, e porque nessa forma e não em outras. Os economistas clássicos dão por encerrado e interrompem sua análise no que para eles é um hieróglifo.

Economistas liberais cristalizaram esses pressupostos, deshistorializando-os, ao assumir uma determinada natureza humana. Para exemplificar, utilizaram-se de Robinson Crusoé. O operação que fizeram foi transplantar para sua ilha conceitos, que, na verdade, pertencem às relações sociais. Para os economistas liberais – ainda hoje - se Robinson Crusoé prepara uma vara para colher frutas com facilidade, ele está  gerando capital.  Marx observou, no entanto, que para Robinson Crusoé não existe o capital enquanto tal. Para ele tudo é maior ou menor quantidade de trabalho. E para ele, os produtos de seu trabalho são valores de uso.”

terça-feira, 8 de maio de 2012

Fetichismo e a organização social da ilusão.

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Isleide Arruda Fontenelle, professora da FGV, faz uma profunda análise do conceito de “fetichismo da mercadoria” no artigo “O trabalho da ilusão: produção, consumo e subjetividade na sociedade contemporânea”. Selecionei um pequeno trecho onde a autora conclui que, para Marx, “o fetichismo da mercadoria indicava uma espiritualização do corpo-mercadoria”.

“O termo “fetichismo da mercadoria” já é amplamente consagrado na teoria sociológica marxista, sendo tomado especialmente como ponto de partida para sua crítica à Economia Política do século XIX, no período de consolidação do capitalismo industrial. A construção do conceito deu-se, portanto, a partir de uma interpretação da realidade da época, enfocando aspectos objetivos e subjetivos ligados à nova forma social estabelecida pelo capitalismo vigente. Portanto, a uma organização social da produção, poderíamos dizer que Marx respondeu com uma “organização social da ilusão”.
Dos muitos aspectos trabalhados no “fetichismo da mercadoria”, um em especial ainda se sustenta (e, não por acaso, precisa ser retomado em uma discussão sobre o novo estatuto do fetichismo na sociedade de consumo contemporânea): de que o valor da mercadoria não está no próprio corpo da mercadoria. Para Marx, ele é produto de uma organização social: da que produz a mercadoria (força-trabalho/valor- trabalho/mais-valia) e da que consome a mercadoria, que mediante valores culturais da época, também passa a valorizar a mercadoria (valor-desejo/valor-de-gozo). Portanto, em Marx, o fetichismo da mercadoria indicava uma espiritualização do corpo-mercadoria, embora a mercadoria ainda fosse vendida como aquilo que era: algodão, café etc.

domingo, 6 de maio de 2012

Fetichismo. A visão soviética.

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O Dicionário Soviético de Filosofia – Ediciones Pueblos Unidos, Montevideo 1965 – afirma que “o fetichismo da mercadoria tem um caráter histórico e desaparecerá quando se destruir el modo capitalista de produção”. Segue o texto em espanhol.

“Representación tergiversada, falsa e ilusoria del hombre acerca de las cosas, mercancías y relaciones de producción; surge cuando impera el régimen de la producción de mercancías basado en la propiedad privada, sobre todo bajo el capitalismo. La aparición del fetichismo de la mercancía se explica por el hecho de que los vínculos de producción entre los individuos, en la sociedad basada en la propiedad privada, no se establecen de manera directa, sino a través del intercambio de cosas en el mercado, a través de la compra y venta de mercancías, adoptan la envoltura de una mercancía (se materializan), y, como consecuencia, adquieren el carácter de relaciones entre cosas, se convierten aparentemente en propiedades de las cosas, de las mercancías. Las cosas, las mercancías creadas por los hombres empiezan, en apariencia, a dominar sobre los propios hombres. Esta materialización de las relaciones de producción entre los hombres, de la dependencia en que el hombre se encuentra respecto al movimiento espontáneo de las cosas, de las mercancías, constituye la base objetiva del fetichismo de la mercancía. En los hombres surge la idea ilusoria de que las cosas mismas, las mercancías, por su propia naturaleza, poseen ciertas propiedades misteriosas, que en realidad no poseen. El fetichismo de la mercancía oculta la verdadera situación: la subordinación del trabajo al capital, la explotación de la clase obrera. En la superficie de los fenómenos, los relaciones entre los capitalistas y los obreros aparecen como relaciones entre poseedores iguales de mercancías. Todas las ideas ilusorias sobre la igualdad y la libertad engendradas por el capitalismo se apoyan en dicha forma tergiversada, inevitable en la sociedad capitalista, en que se manifiestan las categorías económicas. La economía política burguesa, vulgar, utiliza el fetichismo de la mercancía con el propósito de encubrir la auténtica naturaleza del capital y ocultar la causa verdadera de la explotación de la clase obrera. El primero en develar el secreto del fetichismo de la mercancía, sus raíces, su base objetiva, fue Marx. El fetichismo de la mercancía tiene un carácter histórico; desaparecerá cuando se aniquile el modo capitalista de producción.