sábado, 19 de maio de 2012

Qual a fronteira entre Marxismo e Psicanálise?


Maria Rita Kehl, integrante da Comissão da Verdade e reconhecida como profunda conhecedora da obra de Freud e Lacan produz um excelente texto para explicar formação de “celebridades” como Ronaldinho e Xuxa usando o conceito de fetiche, criado por Marx e utilizado por Freud e Lacan. No texto, Kehl afirma que “Muitos elementos da teoria psicanalítica se reencontram, quase inalterados, naquilo que Marx escreveu sobre o fetichismo da mercadoria, que regula as relações de troca e valor no mundo capitalista.” Vale lembrar que, no final de sua vida, Freud reconheceu que conhecia pouco a obra de Marx. Seguem mais alguns trechos do artigo de 1999.

 “Analisando o primeiro capítulo de O Capital, em que Marx lança as bases de sua teoria sobre o fetichismo, Leon Rozitchner vai buscar na origem das transformações sociais que possibilitaram o surgimento do modo de produção capitalista, aquilo que a humanidade “recalcou”, a memória embutida/esquecida no corpo de cada mercadoria posta em circulação no mercado . São as formas coletivas, pré-capitalistas, de produção e distribuição de bens, as organizações comunitárias que desapareceram e que sobrevivem no imaginário coletivo, representadas pela circulação de mercadorias. O que a mercadoria oculta, o seu “segredo” segundo Marx, não é a coletividade e sim o seu desaparecimento. Não é o esforço do trabalhador, mas sua expropriação:
“Marx tem, portanto, que dar conta não apenas de como foi historicamente expropriado o homem proprietário que trabalha, que culmina no sistema capitalista; também tem que dar conta de como num momento da história emerge aquela forma que está presente como expropriação do poder coletivo e, ao mesmo tempo, a forma simbólica que adquire o poder para ocultar seu próprio fundamento através das próprias forças das quais se apropria” (Rozitchener, cit., p.120).
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 “Recorro a Slavoj Zizek, outro teórico da fronteira entre o marxismo e a psicanálise para pensar esta questão:
“O que se deve ter em mente, aqui, é que “fetichismo” é um termo religioso para designar a idolatria “falsa” (anterior) em contraste com a crença verdadeira (atual): para os judeus, o fetiche é o Bezerro de Ouro; para um partidário do espiritualismo puro, fetichismo designa a superstição “primitiva”, o medo de fantasmas e outras aparições espectrais, etc. E a questão, em Marx, é que o universo da mercadoria proporciona o suplemento fetichista necessário à espiritualidade "oficial”; é bem possível que a ideologia “oficial” de nossa sociedade seja o espiritualismo cristão, mas sua base real não é outra senão a idolatria do Bezerro de Ouro, o dinheiro ”. De acordo com a leitura que Zizek faz do Capital, o fetichismo da mercadoria produz o efeito de uma “insólita espiritualização do corpo-mercadoria” (p.26) - a presença, “na própria matéria, de um elemento imaterial mas físico, de um cadáver sutil, relativamente independente do tempo e do espaço” em que esta mercadoria efetivamente circula. A espiritualização, a mesma que se perdeu como riqueza circulante nas trocas criativas entre os indivíduos, retorna aderida às mercadorias, como crença necessária para produzir o esquecimento das condições materiais da produção dessas mesmas mercadorias: a morte lenta do corpo do trabalhador, que transferiu seu tempo de vida para a coisa produzida, e o empobrecimento geral de uma sociedade que só consegue “enriquecer” às custas destas vidas expropriadas.”

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