Maria Rita Kehl, integrante da
Comissão da Verdade e reconhecida como profunda conhecedora da obra de Freud e
Lacan produz um excelente texto para explicar formação de “celebridades” como Ronaldinho e Xuxa usando o conceito de fetiche, criado por Marx e utilizado por
Freud e Lacan. No texto, Kehl afirma que “Muitos elementos da teoria
psicanalítica se reencontram, quase inalterados, naquilo que Marx escreveu
sobre o fetichismo da mercadoria, que regula as relações de troca e valor no
mundo capitalista.” Vale lembrar que, no final de sua vida, Freud reconheceu
que conhecia pouco a obra de Marx. Seguem mais alguns trechos do artigo de
1999.
“Analisando o primeiro capítulo de O Capital, em que Marx lança as bases de
sua teoria sobre o fetichismo, Leon Rozitchner vai buscar na origem das
transformações sociais que possibilitaram o surgimento do modo de produção
capitalista, aquilo que a humanidade “recalcou”, a memória embutida/esquecida
no corpo de cada mercadoria posta em circulação no mercado . São as
formas coletivas, pré-capitalistas, de produção e distribuição de bens, as
organizações comunitárias que desapareceram e que sobrevivem no imaginário
coletivo, representadas pela circulação de mercadorias. O que a mercadoria
oculta, o seu “segredo” segundo Marx, não é a coletividade e sim o seu
desaparecimento. Não é o esforço do trabalhador, mas sua expropriação:
“Marx tem, portanto, que dar conta
não apenas de como foi historicamente expropriado o homem proprietário que
trabalha, que culmina no sistema capitalista; também tem que dar conta de como
num momento da história emerge aquela forma que está presente como expropriação
do poder coletivo e, ao mesmo tempo, a forma simbólica que adquire o poder para
ocultar seu próprio fundamento através das próprias forças das quais se
apropria” (Rozitchener, cit., p.120).
.....................................................................................................
“O que se deve ter em mente,
aqui, é que “fetichismo” é um termo religioso para designar a idolatria “falsa”
(anterior) em contraste com a crença verdadeira (atual): para os judeus, o
fetiche é o Bezerro de Ouro; para um partidário do espiritualismo puro,
fetichismo designa a superstição “primitiva”, o medo de fantasmas e outras
aparições espectrais, etc. E a questão, em Marx, é que o universo da mercadoria
proporciona o suplemento fetichista necessário à espiritualidade
"oficial”; é bem possível que a ideologia “oficial” de nossa sociedade
seja o espiritualismo cristão, mas sua base real não é outra senão a idolatria
do Bezerro de Ouro, o dinheiro ”. De acordo com a leitura que
Zizek faz do Capital, o fetichismo da mercadoria produz
o efeito de uma “insólita espiritualização do corpo-mercadoria” (p.26) - a
presença, “na própria matéria, de um elemento imaterial mas físico, de um cadáver
sutil, relativamente independente do tempo e do espaço” em que esta mercadoria
efetivamente circula. A espiritualização, a mesma que se perdeu como riqueza
circulante nas trocas criativas entre os indivíduos, retorna aderida às
mercadorias, como crença necessária para produzir o esquecimento das condições
materiais da produção dessas mesmas mercadorias: a morte lenta do corpo do
trabalhador, que transferiu seu tempo de vida para a coisa produzida, e o
empobrecimento geral de uma sociedade que só consegue “enriquecer” às custas
destas vidas expropriadas.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário