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Segue transcrição do texto de abertura da Seção 4 do Capítulo 1 do primeiro volume do Capital – “O fetichismo da mercadoria e o seu segredo”. Para estimular sua leitura, antecipo o último parágrafo, quando o velho Karl excursiona pelo futuro ao afirmar que a forma de mercadoria e o valor dos produtos do trabalho não tem a ver com a sua natureza física, mas com a relação social que lhe dá forma fantasmagórica e que para encontrar “algo análogo a este fenômeno é necessário procurá-lo na região nebulosa do mundo religioso”.
Se isto não é uma antevisão do marketing, tudo que li sobre a disciplina, nos últimos 40 anos, foi um equívoco. Passemos ao texto original – destaque para os 2 comentários do autor, no final.
“A primeira vista, uma mercadoria parece uma coisa trivial e que se compreende por si mesma. Pela nossa análise mostramos que, pelo contrário, é uma coisa muito complexa, cheia de subtilezas metafísicas e de argúcias teológicas. Enquanto valor-de-uso, nada de misterioso existe nela, quer satisfaça pelas suas propriedades as necessidades do homem, quer as suas propriedades sejam produto do trabalho humano. É evidente que a atividade do homem transforma as matérias que a natureza fornece de modo a torná-las úteis. Por exemplo, a forma da madeira é alterada, ao fazer-se dela uma mesa. Contudo, a mesa continua a ser madeira, uma coisa vulgar, material. Mas a partir do momento em que surge como mercadoria, as coisas mudam completamente de figura: transforma-se numa coisa a um tempo palpável e impalpável. Não se limita a ter os pés no chão; face a todas as outras mercadorias, apresenta-se, por assim dizer, de cabeça para baixo, e da sua cabeça de madeira saem caprichos mais fantásticos do que se ela começasse a dançar. (1)
O caráter místico da mercadoria não provém, pois, do seu valor-de-uso. Não provém tão pouco dos fatores determinantes do valor. Com efeito, em primeiro lugar, por mais variados que sejam os trabalhos úteis ou as atividades produtivas, é uma verdade fisiológica que eles são, antes de tudo, funções do organismo humano e que toda a função semelhante, quaisquer que sejam o seu conteúdo e a sua forma, é essencialmente um dispêndio de cérebro, de nervos, de músculos, de órgãos, de sentidos, etc., do homem. Em segundo lugar, no que respeita àquilo que determina a grandeza do valor - isto é, a duração daquele dispêndio ou a quantidade de trabalho -, não se pode negar que essa quantidade de trabalho se distingue claramente da sua qualidade. Em todas as épocas sociais, o tempo necessário para produzir os meios de subsistência interessou necessariamente os homens, embora de modo desigual, de acordo com o estádio de desenvolvimento da civilização. (2) Enfim, desde que os homens trabalham uns para os outros, independentemente da forma como o fazem, o seu trabalho adquire também uma forma social.
Donde provém, portanto, o caráter enigmático do produto do trabalho, logo que ele assume a forma-mercadoria? Evidentemente, dessa mesma forma. A igualdade dos trabalhos humanos adquire a forma [objetiva da igualdade] de valor dos produtos do trabalho; a medida do dispêndio da força de trabalho humana, pela sua duração, adquire a forma de grandeza de valor dos produtos do trabalho; finalmente, as relações entre os produtores, nas quais se afirmam as determinações sociais dos seus trabalhos, adquirem a forma de uma relação social dos produtos do trabalho.
[O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente em que ela apresenta aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como se fossem características objetivas dos próprios produtos do trabalho, como se fossem propriedades sociais inerentes a essas coisas; e, portanto, reflete também a relação social dos produtores com o trabalho global como se fosse uma relação social de coisas existentes para além deles.] É por este quiproquó que esse produtos se convertem em mercadorias, coisas a um tempo sensíveis e suprasensíveis (isto, é, coisas sociais). Também a impressão luminosa de um objeto sobre o nervo óptico não se apresenta como uma excitação subjetiva do próprio nervo, mas como a forma sensível de alguma coisa que existe fora do olho. Mas, no ato da visão, a luz é realmente projetada por um objeto exterior sobre um outro objeto, o olho; é uma relação física entre coisas físicas. Ao invés, a forma mercadoria e a relação de valor dos produtos do trabalho [na qual aquela se representa] não tem a ver absolutamente nada com a sua natureza física [nem com as relações materiais dela resultantes]. É somente uma relação social determinada entre os próprios homens que adquire aos olhos deles a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Para encontrar algo de análogo a este fenômeno, é necessário procurá-lo na região nebulosa do mundo religioso. Aí os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, entidades autônomas que mantêm relações entre si e com os homens. O mesmo se passa no mundo mercantil com os produtos da mão do homem. É o que se pode chamar o fetichismo que se aferra aos produtos do trabalho logo que se apresentam como mercadorias, sendo, portanto, inseparável deste modo-de-produção.
[Este caráter fetiche do mundo das mercadorias decorre, como mostrou a análise precedente, do caráter social próprio do trabalho que produz mercadorias.]
(1) Recorde-se que, enquanto o resto do mundo parecia estar tranquilo, a China e as mesas começaram a dançar .- pour encourager les autres
(2) Entre antigos germanos, a grandeza de uma jeira de terra calculava-se pelo trabalho de um dia, e daí o seu nome Tagewerk, Mannewerk, etc. (jurnale ou jornalis, terra jurnalis ou diurnalis). [Ver Georg Ludwig von Maurer, Einleitung zur Geschichte der Mark -, Hof -, etc. Verfassung, Munique, 1854, p. 129 s.]. De resto, a expressão "journal" de terre subsiste ainda em certas regiões da França