“O Fetichismo demonstrou que as mercadorias
possuíam corpo e alma. Assim, a partir dos anos 60, essa alma passou a se
chamar “MARCA” e surgiu uma disciplina chamada MARKETING que se dedicou a
cuidar da “alma’ das mercadorias.”
Em 24 de outubro pp, participei do Painel
5 - Marxismo, Filosofia e Ideologia – do
II Congresso Internacional Karl Marx, realizado pelo Instituto de História
Contemporânea, da Universidade Nova de Lisboa.
O tema da minha intervenção – Karl Marx, precursor
do marketing – teve, surpreendentemente, uma boa repercussão, mesmo entre os
marxistas mais “clássicos”. Segue o roteiro, ao qual foram “agregados” diversos
“cacos”, durante a apresentação.
“Vamos iniciar
Imaginando duas bolsas femininas exatamente iguais – mesmas matérias primas,
mesmo design, mesmo acabamento, mesmo fabricante. Apenas uma pequena, mas não
imperceptível, diferença: uma delas tem a etiqueta Dolce & Gabbana e custa 10 vezes mais......
A mesma situação
poderia ser reproduzida com milhares de mercadorias encontradas em cada loja de
cada esquina ou shopping.
Em 1867, ano de
lançamento da 1ª edição de O Capital, Marx antecipou a explicação da diferença
ao identificar o “Fetichismo das
Mercadorias”. Ou como enfatiza Isaak Rabin, Marx vislumbrou “relações humanas
por trás das relações entre as coisas, revelando a ilusão da consciência humana
que se origina da economia mercantil”.
Sempre a frente do
seu tempo, Marx anteviu as dificuldades
de compreensão, na época, das reflexões do Capitulo 1 – A Mercadoria - e fez o
registro no prefácio da 1ª edição : “Todo
o começo é difícil — isto vale em qualquer ciência. A compreensão do primeiro
capítulo, nomeadamente da secção que contém a análise da mercadoria,
constituirá, portanto, a maior dificuldade. Tornei o mais possível popular
aquilo que mais de perto diz respeito à análise da substância do valor e da
magnitude do valor.”
É
provável que seguidores de “alguns marxismos” considerem um delírio a
afirmativa que a Seção 4 – “O Fetichismo da Mercadoria e seu
Segredo” – do Capítulo I, do único volume de O Capital, escrito, revisado e
prefaciado em várias edições por Marx, seja o precursor do conceito de
marketing.
Para
algumas correntes marxistas a “Parte I Mercadoria e Dinheiro” deve ser ignorada.
No prefácio da edição francesa do Capital, Althusser sugere que o leitor
comece livro pela Parte II – “ A
transformação de dinheiro em capital” – e deixe a leitura da primeira somente
após a conclusão do resto do livro. E recomenda cautela, já que , na sua
opinião “estão imiscuídas aí certas confusões hegelianas”.
Acredito,
até, que Althusser tenha razão – veremos na sequência a transcrição de alguns
trechos da Seção 4, que enfatizam o caráter místico/religioso na relação dos
consumidores com as mercadorias – o que reforçaria a tese de uma reaproximação
de Marx, na idade madura, com o Hegel de sua juventude.
Conceituados
marxólogos, como Denis Collin, Moishe Postone e mesmo o guru de todos nós ,
Hobsbawn, afirmam que a teoria do fetichismo da mercadoria seria a descoberta
que levou Marx a ultrapassar os postulados da Economia Clássica. Leitor atento
de Ricardo, Marx foi muito além ao detectar no fetiche da mercadoria a
explicação para as relações de troca e as formas de distribuição. Collin
considera a Seção 4 um dos capítulos
filosoficamente mais importantes de O Capital.
Nos três
primeiros parágrafos de O Capital, estão duas citações de Nicholas Barbon em
anotações de pé-de-página. Barbon (1640 /1698) é um dublê de médico e
economista e criador do seguro de incêndio, após a catástrofe que destruiu
Londres, em 1666. E que o fez um milionário.....
Nas
notas de pé-de-página, Marx cita a obra “ A
discourse on coining the new Money lighter, de 1696. Em rápida pesquisa,
encontrei outro texto de Barbon, não citado por Marx, “A Discurse of Trade” – Um discurso sobre o Comércio, de 1690 –
onde ele faz reflexões muito interessantes sobre mercadorias e que podem ter
“inspirado” Marx, na criação do Fetichismo da Mercadoria. Vejamos um trecho:
“Mercadorias, que têm o
seu valor estabelecido como suprimento das necessidades da mente, satisfazem
desejos. Desejo provoca demanda. É o apetite da alma, e é tão natural para a
alma, como a fome para o corpo.
As demandas da mente são infinitas, o homem naturalmente aspira, e como a sua
mente é elevada, seus sentidos se tornam mais refinados e mais aptos ao prazer,
seus desejos são ampliados, e sua demanda cresce com os seus desejos, e a
escassez das coisas, gratifica os seus sentidos, adorna seu corpo, e promove a
facilidade, o prazer, e o esplendor da vida.
Entre a grande
variedade de coisas para satisfazer as demandas da mente, aquelas que adornam o
corpo, e fazem avançar o esplendor da vida, tem o uso mais geral, e em todas as
idades, e entre todos os tipos da humanos, são as de maior valor.”
O
Dicionário Soviético de Filosofia – Ediciones Pueblos Unidos .Montevideo 1965 –
apresenta uma versão “tranquilizadora” : “ o fetichismo da mercadoria tem um
caráter histórico e desaparecerá quando se destruir o modo capitalista de produção”.
No entanto, a responsável pela publicação – URSS – acabou muito antes.
Segundo
Richard Sennet, a compreensão do fetichismo da mercadoria ajuda a entender os
fundamentos da Sociedade do Consumo – o que a perspectiva exclusiva da produção
não permitiria.
Quando a
consumidora compra a bolsa Dolce&Gabana não o faz pela necessidade de ter
onde guardar seus objetos de uso. Ela vê no objeto um meio de satisfação de
seus desejos de atração, sensualidade e ascensão social.
Ou, com
afirma Marx na Seção 4: “A primeira vista, uma mercadoria parece uma coisa trivial e que se
compreende por si mesma. Pela nossa análise mostramos que, pelo contrário, é
uma coisa muito complexa, cheia de sutilezas metafísicas e de argúcias
teológicas.”
E no
segundo parágrafo, do texto inicial de O Capital: “A mercadoria é, antes de tudo, um objeto exterior, uma coisa que,
pelas suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie. Que
essas necessidades tenham a sua origem no estômago ou na fantasia, a sua
natureza em nada altera a questão”.
Ou como
define Phillip Kotler – guru de todos os “marqueteiros” - , em 1967, exatamente
100 anos após a publicação de “O Capital”, no clássico “Marketing Management”: “Marketing é a atividade humana dirigida para
satisfação das necessidades e desejos, através dos processos de troca. Um
produto é tudo aquilo capaz de satisfazer a um desejo”.
Ainda na
Seção 4, é possível entender como a
madeira se transforma em dançarina quando
se converte na mercadoria mesa ( o autor não antecipa, mas, o ritmo da dança deve variar com a grife): “Por exemplo, a forma da madeira é alterada, ao fazer-se dela uma
mesa. Contudo, a mesa continua a ser madeira, uma coisa vulgar, material. Mas a
partir do momento em que surge como mercadoria, as coisas mudam completamente
de figura: transforma-se numa coisa a um tempo palpável e impalpável. Não se
limita a ter os pés no chão; face a todas as outras mercadorias, apresenta-se,
por assim dizer, de cabeça para baixo, e da sua cabeça de madeira saem
caprichos mais fantásticos do que se ela começasse a dançar.”
Marx faz aqui uma referência
bem humorada às mesas girantes que eram modismo na Europa, na metade do século
19.......
Em 1993, Sal Randazo segue a
mesma linha fantástica, em “ A criação de mitos na publicidade”: “A maioria das pessoas nem chega a se dar
conta de que há literalmente um outro mundo operando dentro de nós. ......É um
reino mitológico, um desconhecido mundo cheio de seres arquétipos, demônios e
toda uma horda de entidades estranhas.”
O Fetichismo demonstrou que as mercadorias
possuíam corpo e alma. Assim, a partir dos anos 60, essa alma passou a se
chamar “MARCA” e surgiu uma disciplina chamada MARKETING que se dedicou a
cuidar da “alma’ das mercadorias.
Na sociedade do consumo e do espetáculo que
estamos vivendo neste início de século 21 o fetichismo está abrindo mão do
corpo da mercadoria, que está se tornando desnecessário.
Estou me referindo
á “economia do acesso” – quando se promove o acesso a serviços e experiências,
a fim de que se possa deles gozar, sem que se obtenha a propriedade do serviço.
Ou seja: o capitalismo está entrando em uma nova fase na qual o acesso a um bem
ou serviço passa a ser mais importante do que a compra/propriedade desse
serviço. E isso altera radicalmente a noção de propriedade, um dos elementos
centrais do capitalismo industrial e do contrato social moderno. Assim como a
questão do valor: veicula-se agora o valor da experiência.”
Um dos mais
radicais exemplos de mercadoria sem corpo e apenas com alma é a mercadoria fé.
E pra encerrar mais
um trecho da Seção 4 do Capítulo 1 de O Capital:
“Uma mercadoria,
portanto, é algo misterioso simplesmente porque nela o caráter social do
trabalho dos homens aparece a eles como uma característica objetiva estampada
no produto deste trabalho; porque a relação dos produtores com a soma total de
seu próprio trabalho é apresentada a eles como uma relação social que existe
não entre eles, mas entre os produtos de seu trabalho(…). A existência das
coisas enquanto mercadorias, e a relação de valor entre os produtos de trabalho
que os marca como mercadorias, não têm absolutamente conexão alguma com suas
propriedades físicas e com as relações materiais que daí se originam… É uma
relação social definida entre os homens que assume, a seus olhos, a forma
fantasmagórica de uma relação entre coisas. A fim de encontrar uma analogia,
devemos recorrer às regiões enevoadas do mundo religioso.
Neste mundo, as
produções do cérebro humano aparecem como seres independentes dotados de vida,
e entrando em relações tanto entre si quanto com a espécie humana.
O mesmo acontece no mundo das
mercadorias com os produtos das mãos dos homens. A isto dou o nome de
fetichismo que adere aos produtos do trabalho, tão logo eles são produzidos
como mercadorias, e que é, portanto inseparável da produção de
mercadorias."