domingo, 24 de novembro de 2013

Aliança com o diabo.


1º de dezembro de 1852. Marx faz, no New York Daily Tribune, comentário que poderia servir de advertência para alianças políticas tipo Lula/Maluf, na eleição de Fernando Haddad.
“ Na política, a pessoa pode se aliar até com o próprio diabo – só precisa garantir que é ela que está enganando o diabo, em vez de estar sendo enganada por ele.”

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

O Corpo e a Alma das Mercadorias.


“O Fetichismo demonstrou que as mercadorias possuíam corpo e alma. Assim, a partir dos anos 60, essa alma passou a se chamar “MARCA” e surgiu uma disciplina chamada MARKETING que se dedicou a cuidar da “alma’ das mercadorias.”
Em 24 de outubro pp, participei do Painel 5  - Marxismo, Filosofia e Ideologia – do II Congresso Internacional Karl Marx, realizado pelo Instituto de História Contemporânea, da Universidade Nova de Lisboa.
O tema da minha intervenção – Karl Marx, precursor do marketing – teve, surpreendentemente, uma boa repercussão, mesmo entre os marxistas mais “clássicos”. Segue o roteiro, ao qual foram “agregados” diversos “cacos”, durante a apresentação.


“Vamos iniciar Imaginando duas bolsas femininas exatamente iguais – mesmas matérias primas, mesmo design, mesmo acabamento, mesmo fabricante. Apenas uma pequena, mas não imperceptível, diferença: uma delas tem a etiqueta Dolce & Gabbana e  custa 10 vezes mais......
A mesma situação poderia ser reproduzida com milhares de mercadorias encontradas em cada loja de cada esquina ou shopping.
Em 1867, ano de lançamento da 1ª edição de O Capital, Marx antecipou a explicação da diferença ao identificar o  “Fetichismo das Mercadorias”. Ou como enfatiza Isaak Rabin, Marx vislumbrou “relações humanas por trás das relações entre as coisas, revelando a ilusão da consciência humana que se origina da economia mercantil”.
Sempre a frente do seu tempo, Marx anteviu  as dificuldades de compreensão, na época, das reflexões do Capitulo 1 – A Mercadoria - e fez o registro no prefácio da 1ª edição : “Todo o começo é difícil — isto vale em qualquer ciência. A compreensão do primeiro capítulo, nomeadamente da secção que contém a análise da mercadoria, constituirá, portanto, a maior dificuldade. Tornei o mais possível popular aquilo que mais de perto diz respeito à análise da substância do valor e da magnitude do valor.”
É provável que seguidores de “alguns marxismos” considerem um delírio a afirmativa  que  a Seção 4 – “O Fetichismo da Mercadoria e seu Segredo” – do Capítulo I, do único volume de O Capital, escrito, revisado e prefaciado em várias edições por Marx, seja o precursor do conceito de marketing.
Para algumas correntes marxistas a “Parte I Mercadoria e Dinheiro” deve ser ignorada. No prefácio da edição francesa do Capital, Althusser sugere que o leitor comece  livro pela Parte II – “ A transformação de dinheiro em capital” – e deixe a leitura da primeira somente após a conclusão do resto do livro. E recomenda cautela, já que , na sua opinião “estão imiscuídas aí certas confusões hegelianas”.
Acredito, até, que Althusser tenha razão – veremos na sequência a transcrição de alguns trechos da Seção 4, que enfatizam o caráter místico/religioso na relação dos consumidores com as mercadorias – o que reforçaria a tese de uma reaproximação de Marx, na idade madura, com o Hegel de sua juventude.
Conceituados marxólogos, como Denis Collin, Moishe Postone e mesmo o guru de todos nós , Hobsbawn, afirmam que a teoria do fetichismo da mercadoria seria a descoberta que levou Marx a ultrapassar os postulados da Economia Clássica. Leitor atento de Ricardo, Marx foi muito além ao detectar no fetiche da mercadoria a explicação para as relações de troca e as formas de distribuição. Collin considera a Seção 4 um dos capítulos  filosoficamente mais importantes de O Capital.
Nos três primeiros parágrafos de O Capital, estão duas citações de Nicholas Barbon em anotações de pé-de-página. Barbon (1640 /1698) é um dublê de médico e economista e criador do seguro de incêndio, após a catástrofe que destruiu Londres, em 1666. E que o fez um milionário.....
Nas notas de pé-de-página, Marx cita a obra “ A discourse on coining the new Money lighter, de 1696. Em rápida pesquisa, encontrei outro texto de Barbon, não citado por Marx, “A Discurse of Trade” – Um discurso sobre o Comércio, de 1690 – onde ele faz reflexões muito interessantes sobre mercadorias e que podem ter “inspirado” Marx, na criação do Fetichismo da Mercadoria. Vejamos um trecho:
“Mercadorias, que têm o seu valor estabelecido como suprimento das necessidades da mente, satisfazem desejos. Desejo provoca demanda. É o apetite da alma, e é tão natural para a alma, como a fome para o corpo.
As demandas da mente são infinitas, o homem naturalmente aspira, e como a sua mente é elevada, seus sentidos se tornam mais refinados e mais aptos ao prazer, seus desejos são ampliados, e sua demanda cresce com os seus desejos, e a escassez das coisas, gratifica os seus sentidos, adorna seu corpo, e promove a facilidade, o prazer, e o esplendor da vida.
Entre a grande variedade de coisas para satisfazer as demandas da mente, aquelas que adornam o corpo, e fazem avançar o esplendor da vida, tem o uso mais geral, e em todas as idades, e entre todos os tipos da humanos, são as de maior valor.”
O Dicionário Soviético de Filosofia – Ediciones Pueblos Unidos .Montevideo 1965 – apresenta uma versão “tranquilizadora” : “ o fetichismo da mercadoria tem um caráter histórico e desaparecerá quando se destruir o modo capitalista de produção”. No entanto, a responsável pela publicação – URSS – acabou muito antes.
Segundo Richard Sennet, a compreensão do fetichismo da mercadoria ajuda a entender os fundamentos da Sociedade do Consumo – o que a perspectiva exclusiva da produção não permitiria.
Quando a consumidora compra a bolsa Dolce&Gabana não o faz pela necessidade de ter onde guardar seus objetos de uso. Ela vê no objeto um meio de satisfação de seus desejos de atração, sensualidade e ascensão social.
Ou, com afirma Marx na Seção 4: A primeira vista, uma mercadoria parece uma coisa trivial e que se compreende por si mesma. Pela nossa análise mostramos que, pelo contrário, é uma coisa muito complexa, cheia de sutilezas metafísicas e de argúcias teológicas.”
E no segundo parágrafo, do texto inicial de O Capital: “A mercadoria é, antes de tudo, um objeto exterior, uma coisa que, pelas suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie. Que essas necessidades tenham a sua origem no estômago ou na fantasia, a sua natureza em nada altera a questão”.
Ou como define Phillip Kotler – guru de todos os “marqueteiros” - , em 1967, exatamente 100 anos após a publicação de “O Capital”, no clássico “Marketing Management”: Marketing é a atividade humana dirigida para satisfação das necessidades e desejos, através dos processos de troca. Um produto é tudo aquilo capaz de satisfazer a um desejo”.
Ainda na Seção 4, é possível  entender como a madeira se transforma em dançarina quando  se converte na mercadoria mesa ( o autor não antecipa, mas,  o ritmo da dança deve variar com a grife): “Por exemplo, a forma da madeira é alterada, ao fazer-se dela uma mesa. Contudo, a mesa continua a ser madeira, uma coisa vulgar, material. Mas a partir do momento em que surge como mercadoria, as coisas mudam completamente de figura: transforma-se numa coisa a um tempo palpável e impalpável. Não se limita a ter os pés no chão; face a todas as outras mercadorias, apresenta-se, por assim dizer, de cabeça para baixo, e da sua cabeça de madeira saem caprichos mais fantásticos do que se ela começasse a dançar.”
Marx faz aqui uma referência bem humorada às mesas girantes que eram modismo na Europa, na metade do século 19.......
Em 1993, Sal Randazo segue a mesma linha fantástica, em “ A criação de mitos na publicidade”: “A maioria das pessoas nem chega a se dar conta de que há literalmente um outro mundo operando dentro de nós. ......É um reino mitológico, um desconhecido mundo cheio de seres arquétipos, demônios e toda uma horda de entidades estranhas.”
O Fetichismo demonstrou que as mercadorias possuíam corpo e alma. Assim, a partir dos anos 60, essa alma passou a se chamar “MARCA” e surgiu uma disciplina chamada MARKETING que se dedicou a cuidar da “alma’ das mercadorias.
Na sociedade do consumo e do espetáculo que estamos vivendo neste início de século 21 o fetichismo está abrindo mão do corpo da mercadoria, que está se tornando desnecessário.
Estou me referindo á “economia do acesso” – quando se promove o acesso a serviços e experiências, a fim de que se possa deles gozar, sem que se obtenha a propriedade do serviço. Ou seja: o capitalismo está entrando em uma nova fase na qual o acesso a um bem ou serviço passa a ser mais importante do que a compra/propriedade desse serviço. E isso altera radicalmente a noção de propriedade, um dos elementos centrais do capitalismo industrial e do contrato social moderno. Assim como a questão do valor: veicula-se agora o valor da experiência.”
Um dos mais radicais exemplos de mercadoria sem corpo e apenas com alma é a mercadoria fé.
E pra encerrar mais um trecho da Seção 4 do Capítulo 1 de O Capital:
“Uma mercadoria, portanto, é algo misterioso simplesmente porque nela o caráter social do trabalho dos homens aparece a eles como uma característica objetiva estampada no produto deste trabalho; porque a relação dos produtores com a soma total de seu próprio trabalho é apresentada a eles como uma relação social que existe não entre eles, mas entre os produtos de seu trabalho(…). A existência das coisas enquanto mercadorias, e a relação de valor entre os produtos de trabalho que os marca como mercadorias, não têm absolutamente conexão alguma com suas propriedades físicas e com as relações materiais que daí se originam… É uma relação social definida entre os homens que assume, a seus olhos, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. A fim de encontrar uma analogia, devemos recorrer às regiões enevoadas do mundo religioso.
Neste mundo, as produções do cérebro humano aparecem como seres independentes dotados de vida, e entrando em relações tanto entre si quanto com a espécie humana.
O mesmo acontece no mundo das mercadorias com os produtos das mãos dos homens. A isto dou o nome de fetichismo que adere aos produtos do trabalho, tão logo eles são produzidos como mercadorias, e que é, portanto inseparável da produção de mercadorias."